Monday, April 17, 2017

Matilde.

"O poema mais impressionante que me apareceu ontem na frente começava com o verso "Darling, you think it's love, it's just a midnight journey". Pensei que era capaz de escrever isso setenta vezes num muro, durante uma tarde inteira. Depois percebi que é março, já faz sol, não é bom passar-se um dia agarrado a uma parede. Mais vale a vida. A memória mais impressionante que me apareceu ontem, por causa do tal poema que é do Brodsky, dizia-me que o amor quando é a sério começa sempre num gaguejo. O gaguejo é que contradiz a meia-noite. Quando falei com a Inês no rádio ainda era fevereiro, fazia muito frio, a primavera parecia uma piada que ninguém mais se atreveria a contar na rua. Depois a Inês perguntou-me sobre certas cidades e eu fartei-me de gaguejar. A memória de cada homem é uma sala cheia de cordas, uma esticadas outras meio lassas, e entrar dentro dela implica sempre o tropeço. Tropeçamos nas cordas da memória do mesmo jeito que gaguejamos de madrugada, e essa reconstrução é que faz o futuro. Eu acho. A Inês também perguntou sobre as canções, foi tão difícil escolher só quatro canções, perguntou sobre o relógio invisível que todos levamos tatuado na cabeça, talvez eu esteja inventando isto ou talvez não, perguntou sobre a entrada do verão dentro do bolso de uma camisa. Gaguejei o tempo todo. As perguntas da Inês foram todas no alvo certo, por isso é que Falar Com Ela foi tão bom. Dentro de um estúdio de rádio nunca faz frio nenhum. E já agora, o poema do Brodsky acaba assim: "Olha: o que foi deixado para trás é tão escasso quanto o que sobra para a frente. Daí a lâmina do horizonte". [Matilde Campilho, sempre única, irrepetivel... igual a si própria]

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