Thursday, January 1, 2015

Foges a sete pés do lugar comum.

"...porque te ensinam quando és novo que é aí que habita a piroseira. E com a idade deixas de te importar um pouco. Tens mais em que pensar: tens de pensar em viver, perceber porque é que andas por cá. Nasceste para fazer o quê? Para querer o quê? Para te dares e receberes. Sendo a solidão a mais terrível de todas as coisas vivas, demoramos a perceber. E muitas vezes não nos entregamos por medo. Por cálculo. Porque pensamos prós e contras, como se estivéssemos a fazer uma compra para a casa. Relaxa. Será sempre impossível saber o que ai vem, ou o que poderia ter sido, poupemo-nos a exercício tão penoso... Mas não pode deixar de nos impressionar que duas criaturas deixem de se encontrar porque lhes ensinaram que há demasiados riscos na entrega. Como negociantes prósperos, alimentam-se da desconfiança, seguros de que lhes bastará deitarem-se, a cada noite, convencidos de que não se deixaram enganar. Não é talvez o problema de pensarem isto, mas é talvez o problema de pensarem que "isto" é uma vitória. Será impossível imaginar o que poderia ter sido. Aqui, como noutras ocasiões, quando o destino nos parece amargo. Mas devia talvez impressionar-nos, se ainda formos a tempo, as mil e uma maneiras que hoje há à nossa disposição para nos afastarmos, ainda por cima mil e uma maneiras mascaradas de oportunidades, de mecanismos ditos de proximidade. Eu, vocês, os nossos vizinhos, os vossos amigos, queremos afinal pouco. Muito pouco comparado com o que nos fazem crer que queremos. Uma oportunidade, uma chance pequenina, de conhecermos a maravilha de sermos de alguém e sentir que alguém quer ser nosso. E por momentos, nem que seja por um momento, sabermos o que é partilhar um momento, saborear o espanto de conseguirmos esquecer-nos de nós, por um momento, um pequeno momento, imaginarmos que ao nosso lado um outro coração corre à mesma velocidade serena, ansioso por chegar ao mesmo lugar, onde nos espera o mesmo destino, por um momento, um momento simples, pequeno, que nos garante estarmos vivos porque alguém deseja que estejamos vivos, ao nosso lado, a tocar-nos ao de leve, apenas o suficiente para sabermos que não estamos sós, que não estamos sós nesse momento, esse pequeno, irrepetível momento, em que o caminho nos parece suave, quando por um momento, que queremos guardar por ser irrepetível, podemos por segundos fechar os olhos e abrir os braços, seguros de que alguém nos vai segurar, subitamente leves numa relva fresca, tranquilos por um momento, amados por um momento, que provavelmente não se repetirá, mas que não trocaríamos por nada, nessa absoluta necessidade de viver enquanto há um sopro de vida, apesar do medo, apesar das regras, das probabilidades, das mais-do-que-evidentes certezas, esse momento, esse pequeno, singelo, inesperado momento, em que nos cicatrizam as feridas de uma existência aflita. E o coração pode serenar. Cheio de feridas, talvez, rasgado e colado, talvez. Mas a pulsar, ainda. A bater, que é para isso que viemos cá". (Rodrigo Guedes de Carvalho)

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