O tempo.

"O tempo cuida de despir. O tempo trata de apagar tudo e dizem que o que apaga cura. Não acredito nisso. O tempo ameniza e trata de te fazer esquecer porque é que as pessoas se afastaram, porque é que estavas tão zangado naquele dia e porque é que deixaste de fazer isto ou aquilo ou de ir aquele lugar, ouvir aquela música. Trata de fazer esquecer, mas já não és igual. Já nem sabes bem porquê, não sabes qual foi o momento em que a inocência quebrou, em que as olheiras começaram a cobrir os olhos ou o dia em que passaste a sonhar menos. Não sabes, mas não és igual. O tempo trata de te ensinar a desconfiar de quem quer saber de ti, trata de te consumir e deixa de te dar tempo para quereres saber dos que mais gostas, trata de te ensinar a falar mais baixo em sítios públicos, a não pensares só no que mais gostas mas também no que te dá sustento, a não partilhares tudo o que guardas no peito e que às vezes o coração doi muito, mais do que o mindinho que bate na perna da mesa, mais que o beliscão do teu primo mais velho, mais que o joelho esfolado de quem cai do baloiço. O tempo cuida de te ensinar que as ressacas passam a durar 3 dias, que há ressacas que duram a vida toda e que a vida toda nao chega para fazeres todas as coisas de que falavas, para realizar todos os desejos que pediste em túneis sem respirar, para fazer os disparates que escrevias nos quantos-queres. Deixas de ser igual e não sabes porquê, a falta de tempo entra pela janela a meio da noite e deita-se ao teu lado, a falta de fé esconde-se debaixo da tua almofada bem no sítio onde deixavas os dentes de leite, a dor muda-te os costumes e por vezes faz-te quebrar alguns valores, o tempo vira-te do avesso tantas vezes que deixas de saber o que é o teu avesso e a tua pele. O tempo corre contra ti, em esquinas ventosas que te partem o guarda chuva. O tempo faz-te parar a meio daquela letra que sabias de cor, faz-te esquecer o nome daquele professor faz-te fazer tantas coisas que tens de fazer que de repente dás por ti a dar-te ao luxo de voltar a fazer coisas simples e a pensar "porque é que eu deixei de fazer isto?". O tempo faz-te esquecer do quanto te riste a rebentar balões de pastilha e a tirar pastilha do nariz, de como é bom fazer o pino à parede, e por os pés fora da janela do carro ao voltar da praia. O tempo ameniza dores insuportáveis e saudades infinitas mas diminui-te a esperança e a boa vontade, diminui o quanto acreditas nos outros e por vezes em ti. O tempo senta-te à mesa com os teus demônios e obriga-te a tratá-los por tu, trata de ensinar que comer sopa é mesmo tao importante quanto isso e que os teus pais estão certos 70% das vezes. O tempo substitui os all stars rasgados, os discos rabiscados e os livros de bolso tortos com dedicatórias de tinta permanente. O tempo cuida de despir, despe-te no chão enrola-te as pernas e faz-te perguntar "ainda falta muito tempo?" E quando das por ti, o filme acabou. Faz porque batam palmas, não te esqueças de bater palmas". (Carolina Deslandes)